Crónicas para dormir (II)
“A única ditadura que eu quero é aquela em que os portugueses de bem são reconhecidos”
André Ventura
Como se cura uma doença?

As feridas são fáceis de tratar:
Estanca-se o sangue, limpa-se a zona, desinfecta-se e mete-se um penso.
Pode ser só um arranhão – uma escoriação – do gato que não apreciou o meu toque;
Pode ser perfurante, ao cortar-me com uma faca;
Pode ser consequência de uma doença, uma exteriorização do que se revolta por dentro.
Na cura de uma doença, no entanto, não podemos actuar do mesmo modo ao que recorremos numa ferida;
A ferida não requer tantas apresentações;
A doença, por seu turno, requer um “olá” inicial, uma conversa sobre as suas origens, de onde vem, para onde vai – num diálogo fingidor, que busca definir os pontos fracos, os alicerces fragilizados.
Daí, nasce a questão: como se conhece uma doença, quando se mascararam os sintomas?
À noite, as dimensões perdem os absolutos.
E esse relativismo que nasce da penumbra, contém, em si, uma forma de entendimento.
Deitem-se.
Desliguem as luzes.
Abram os olhos e percepcionem a incapacidade de enxergar – façam-no de um modo activo;
Considerem as dissemelhanças entre os dois mundos, as duas realidades, a dualidade das mesmas coisas.
Toquem no vosso próprio queixo – já está? Boa.
Agora, ergam o braço – devagar, primeiro.
Voltem a descê-lo.
Repitam a acção: para cima e para baixo.
Acelerem a cada início, até o movimento alterar o equilíbrio da atmosfera, remetendo-vos o frio que se cria.
Engulam o desconforto.
Saboreiem os ossos a mexer, nas permissões das articulações, com a actina a deslizar nos filamentos de miosina.
O que vêem?
Nada.
Não é magnífico?
O movimento não requer ser visto para se mover – até o favorece.
Pensem no vosso braço, velozmente a subir e a descer, num ímpeto crescente, desregrado, treslouco, excitado consigo mesmo.
Agora, a meio da violência, mudem-lhe a trajectória.
Direccionem-no para o vosso queixo.
A dor que advém, são os absolutismos a rir do que relativamos.