Crónicas para dormir (IV)
Deito-me.
É uma acção – similar a outras tantas – mas algo na noite afia o criativo, o quimérico: vejo cores que não existem, tenho tonturas de cinismo ao recordar o que o astro-rei ilumina, de dia; as fantasias a que o meu cérebro adere.

Se estender a mão – penetrando o frio que me gela a ternura dos movimentos – sei que posso tocar em algo novo, ciente.
Hesito.
Recubro-me nos tecidos.
Falta-me a vontade de ser maior, de transcender – é o cansaço de crer; da fé no impossível que desassossega a alma.
Ficam para amanhã, essas criações divinas.
Fecho os olhos.
Não os fecho, na verdade. São as pálpebras que repousam sobre os meus globos – pele sobre córnea.
Surge-me, por entre memórias ludibriadas, o café da manhã.
Vejo-me a engoli-lo – o quente nas mucosas – em queda-livre até ao estômago.
Em 45 minutos, 99% da cafeína vai ser absorvida no meu tracto gastro-intestinal, e distribuída pela água do meu organismo.
Eu não sei, não o entendo, não o controlo, não o defino: mas, nas horas que se seguem, ela vai afectar-me os sistemas:
- Cardiovascular;
- Respiratório;
- Renal;
- Nervoso.
Vai:
- Antagonizar os receptores de adenosina e de benzodiazepinas;
- Inibir a fosfodiesterase;
- Causar a libertação de cálcio dos armazéns intracelulares.
Vai:
- Estimular o meu coração e aumentar o fluxo de sangue coronário;
- Relaxar o músculo liso nos pulmões e promover a dilatação bronquial;
- Causar diurese;
- Estimular a secreção de renina, dopamina, norepinefrina, serotonina, acetilcolina e glutamato;
- Estimular os meus neurónios GABAérgicos.

Mas eu não sei nada disso;
É o uso indevido, contranatura do cérebro, que me permite saber.
Sinto os mínimos que diferenciam as texturas;
O ácido e doce, amargo e salgado, nas minhas 10.000 papilas gustativas;
As violências e ternuras, dos 50 aos 50.000 Hz.
Percepciono o que é triste e o que é feliz, o que me exalta e me serena, as linguagens corporais e as mentiras compulsivas.
Mas não sinto o estômago.
Não sinto o sangue.
Não sinto as bicamadas fosfolipídicas ou os canais de potássio sensíveis ao ATP.
A dor, e a sua ausência, é tudo o que sei em absoluto sobre mim.
É a única comunicação honesta do organismo, no imperativo da sobrevivência.
Os sentidos, de resto, são teatro – entretenimento que o meu cérebro cria.
Uma distracção de sensações; ficção comunitária, embrutecedora, omnipresente; criacionismo.

Amor ou ódio, raiva ou desejo: são cartoons.
O comando desligado da PlayStation.