Estoicismo e a gestão racional das paixões
Em sequência de xxxvi (cinismo) e xxxviii (epicurismo)
Se o Epicurismo é erradamente visto como uma vida de prazer desenfreado, o Estoicismo sofre do mesmo mal, mas em sentido contrário: a imagem do Estóicos é a Apatia.
Não sendo a apatia um termo necessariamente errado para descrever – em parte – o Estoicismo, o termo, hoje, tem um significado diferente do que os estóicos usavam.

ESTOICISMO
- ORIGEM
O fundador do Estoicismo foi Zenão de Cítio.

Zenão nasceu em 334 AEC, no Chipre, em Cítio (actual Lárnaca).
Começou a sua vida como mercador mas terá mudado os seus interesses para a filosofia ao ler um relato de Xenofonte (filósofo e discípulo de Sócrates) sobre Sócrates.
Reza a lenda que, de visita a Atenas, perguntou a um livreiro com que filósofo deveria aprender. O livreiro apontou para o primeiro filósofo que passou – Crates.
Crates era um cínico – partilhando a filosofia de vida de Diógenes (xxxvi).
Como veremos, há paralelismos entre o Cinismo e o Estoicismo que terão origem nos ensinamentos cínicos de Crates.
Zenão, no entanto, tinha dois impedimentos que o afastavam do Cinismo:
- Uma compostura que o impedia de viver “sem a vergonha” dos cínicos;
- Um forte sentido de dever cívico, o que o impedia de rejeitar a sociedade, traço realçado na sua recusa da cidadania ateniense, fiel à sua cidade natal de Cítio, onde financiou várias construções.
O Estoicismo nasce destas divergências de Zenão.
Mais tarde, após conviver com outros professores, fundou a sua própria escola na stoa poikile (colunata pintada ou Estoa) da agora de Atenas – daí derivando o nome.
Estóico Do grego stoikos (em sentido literal – pertencente a um pórtico); Do grego Stoa (pórtico – Stoa Poikile = o pórtico pintado) |


À direita – Reconstrução (fonte)
Zenão de Cítio morreu em 262 AEC, já septuagenário.
- FILOSOFIA
Ainda que numa fase mais tardia – estoicismo posterior (com Séneca, Epicteto e Marco Aurélio) – o Estoicismo tenha-se dedicado quase em exclusivo às questões éticas da vida, numa fase inicial – com Zenão de Cítio e os seus dois sucessores – para lá da ética, também de desenvolveram ensinamentos de física e lógica.
Destes, realço estas ideias defendidas pelos estóicos:
- O que define a realidade, é a capacidade de actuar ou ser objecto de actuação (causa-e-efeito);
- As únicas coisas que existem são os corpos físicos – ou seja, a matéria é o princípio fundamental do universo (arche), indestrutível e eterna;
Arche – Ideia antiga da filosofia, de que tudo deriva de uma substância inicial; – Vários filósofos pré-socráticos apostaram em diferentes substâncias: água, fogo, números. |
- Definiram ainda outro princípio fundamental – o Logos, também designado por Razão, Destino e Deus;
Logos – Na filosofia antiga, Logos descreve um princípio que ordena o universo e regula os fenómenos que acontecem. |
- Os estóicos afirmam que o Logos organiza o universo, através de ciclos de mudanças que começam no fogo, formam os restantes elementos (água, ar e terra) e, da combinação dos elementos, surge o mundo como o conhecemos. Tudo retorna, depois, ao fogo, que reinicia o ciclo, eternamente.
Foi, no entanto, pela ética que o Estoicismo se tornou influente, por um período tão longo.
Os estóicos, tal como as escolas filosóficas que surgiram neste tempo, viam na felicidade – ou mais correctamente – na eudemonia (xvi), o objectivo, a finalidade (o telos) da vida.
E como se atinge a eudemonia?
Para isso, primeiro precisamos de distinguir aquilo que é verdadeiramente bom para nós – ou seja, o que nos beneficia independentemente das circunstâncias.
Os estóicos enunciaram quatro qualidades deste género:
- Prudência (phronêsis);
- Coragem (andreia);
- Moderação (sôphrosunê);
- Justiça/Moralidade (dikaiosunê).
De realçar que a tradução de palavras gregas para as linguagens actuais é perigosa, porque é difícil, muitas vezes, arranjar palavras que tenham a mesma dimensão das originais.
Há, no entanto, outras que são benéficas para nós, mas não o são sempre.
A estas, o estoicos designavam-nas por “indiferentes“, e incluem a Riqueza, a Saúde e a Honra (por exemplo).
Por habitualmente serem vantajosas para nós, temos tendência de as procurar.
A chave para uma vida boa e feliz está, assim, dividida em dois:
- Escolher racionalmente as coisas indiferentes;
Podemos procurá-las, no entanto, não podemos permitir que elas se sobreponham às qualidades que são sempre boas.
Assim, mesmo que não sejamos bem-sucedidos a alcançar os indiferentes, temos na mesma as qualidades mais importantes, e seremos na mesma felizes.
- Diferença entre a acção e a paixão;
Os estoicos diferenciavam entre acção – o que nós fazemos, portanto o que controlamos – e paixão – o que nos ocorre ou sofremos, passivamente, que inclui a dor, o medo, o desejo e o prazer, assim como o amor e a raiva.
Estas paixões eram designadas por pathē:
Pathē – Num sentido neutro, significa o que é feito ou acontece a alguém; – Num sentido negativo, significa sofrimento, infortúnio. |
Assim, a origem de Apatheia vem associada a estas paixões, que os estóicos defendiam que deveriamos enfrentar estoicamente, ou seja, não permitir que elas nos dominem.
Ao contrário do sentido actual de Apatia – com uma clara conotação negativa, da ausência de sentir – os estóicos compreendiam que há reacções automáticas sobre as quais não temos controlo. No entanto, isso não significa que tenhamos de sucumbir à nossa tendência para reagir emocionalmente ou de modo egoísta.
Os exemplos ajudam-nos a compreender isto:
MEDO – expectativa irracional de algo mau acontecer. |
A reacção de luta-ou-fuga que temos perante um perigo é incontrolável. Podemos, no entanto, controlar racionalmente o modo como percepcionamos algo que nos assusta. Assim, não teremos: – Medo – no sentido em que é irracional e não justificado (por exemplo, ter medo do escuro). Mas sim: – Cautela – aversão ao que é verdadeiramente mau para nós (por exemplo, afastarmo-nos de alguém que nos ameaça) |
ÂNSIA – desejo irracional por algo que, erradamente, julgamos ser bom. |
Se não formos racionais com os nossos desejos, recorrendo apenas às nossas emoções como direcção, muitas vezes acabaremos em buscas desenfreadas pelas coisas indiferentes, sem considerarmos o que é realmente bom para nós. Assim, devemos evitar: – Ânsia – no sentido em que é irracional e injustificada. E procurar: – Intento – no sentido de ser um desejo racional, por algo que é realmente bom para nós. Talvez um bom exemplo para isto seja a ânsia que um fumador tem de fumar, em oposição ao intento de parar de fumar. |
Assim, podemos pensar nas paixões como o modo irracional de sentir. E este modo, por ser irracional, muitas vezes leva-nos à infelicidade.

É isto que o estóicos pretendiam com a Apatheia – aceitar o que está fora do nosso controlo, mas gerir racionalmente as paixões de modo a que estas não nos dominem e não nos consumam.

Isto também nos elucida sobre as qualidades que são verdadeiramente boas:
- Prudência – o conhecimento para distinguir entre o que é bom ou mau para as nossas vidas, o que produz felicidade;
- Coragem – capacidade de enfrentar com serenidade, o que é assustador, assim como a dor e o desconforto; dominar medos;
- Moderação – compostura, harmonia e disciplina perante desejos e prazeres, permitindo-nos escolher com cautela;
- Justiça/Moralidade – sermos justos não só no sentido legal, mas também nas nossas relações com os outros; igualdade social.
Termino com citações de dois estóicos (que falarei com mais detalhe depois) e uma retirada de Hamlet, que me parecem importantes:
“Lembra-te que as palavras e golpes sujos não são indignos em si; é o facto de os ajuizares assim que os tornam indignos. Quando alguém te faz ficar zangado, é o teu próprio pensamento que te zangou.
Portanto, assegura-te de que não te deixas dominar pelas tuas impressões.”
epicteto
“Sem dúvida que os problemas virão; mas não são um facto presente, e poderão nem sequer acontecer – porquê ir a correr ao seu encontro? […]
Há mais coisas que nos fazem medo do que mal […]
Exageramos, ou imaginamos, ou antecipamos as penas, desnecessariamente.”
séneca
“Nada há que seja bom ou mau, é o pensamento que o torna bom ou mau.”
William Shakespeare