A forma do não-mundo.
“Hoje vais dormir bem.” – Sussurrou ela, a voz rasgando a monotonia do silêncio, mas só por um breve segundo, um segundo que só se estendeu exactamente, precisamente por um segundo – “E amanhã, quando acordares, já não estarei aqui.”

Um sorriso.
Triste, abatido pela mágoa de quem deixa o coração para partir – qual bilhete, qual bagagem – sabendo que, ao voltar, nem o coração será o mesmo, nem o lugar onde o deixou.
“É assim, a vida.” – Comentou ele, a voz arrastando-se por entre sílabas pesadas e lágrimas nervosas – “Que é o mesmo que dizer que a vida é como é, e nós somos como somos, e nada interessa mais do que qualquer outra coisa.”
Ela falhou a compreender as palavras dele, ou ignorou, ou não as ouviu; mas, de qualquer das formas, não lhe amargurou o espírito. Agarrou-se a ele, cabelos sobre o peito, suave ao toque mas áspero aos sentidos, e fechou os olhos como uma criança em desejos.
“Para onde vais, daqui?” – Perguntou ele.
“Daqui? Tenho mais uns quantos para ir ver.” – Respondeu ela, a cada palavra dando parte de si, parte do sentido.
“São todos como eu?”
“Sim, não. Há muitos. Todos chegam a mim, só não todos pelo mesmo caminho. Como em tudo. Mas porque queres saber?”
“Podíamos formar um clube.”
A gargalhada dela – uma melodia consonante a saltitar pelos lençóis – foi quase de gozo, mas ele não levou a mal, nunca leva a mal quando o gozam de um modo tão belo.
“E o que chamarias ao teu clube?” – Perguntou ela.
“Não podia ter nome. Fugiam todos de vergonha.”
Ela abafou o riso com as mãos, a princípio, mas quando ele se juntou, riram-se os dois, desavergonhadamente.
“Bem, vamos a isto?” – Declarou ela, com um toque de ombro.
Ele suspirou, mas resignou-se à vontade maior.
Girou sobre si mesmo, e estacionou na borda da cama. Vasculhou, com a mão, pelo chão do quarto, mas a escuridão dificultou-lhe a busca.
Por fim, lá sentiu o cabo da faca.
Voltou-se para ela – faca na mão, coração no peito – e olhou-a de cima a baixo.
“O mais fácil é ires pela barriga. Não tens como partir as costelas.” – Comentou ela, em parte despertando-o para a depravação do momento.
“Isto é tudo figurativo, certo?” – Perguntou ele, a mão tremendo-lhe.
“Claro. Repara.” – Disse ela, apoiando a sua mão na dele e empurrando-lhe o braço de uma vez. A lâmina da faca desapareceu por completo no ventre.
“Achas que se fosse real, eu não estaria a gritar com dores?”– Comentou ela, sorrindo-lhe numa calma serena, sinónimos enfáticos.
Ele moveu a faca – para cima primeiro, para baixo depois – criando uma fissura de maiores dimensões. Depois, enfiou a mão direita – por entre vísceras e circunvoluções – até chegar ao diafragma.
“Com violência, agora.” – Pediu ela.
Ele ganhou ímpeto e, num soco, rasgou o músculo, abrindo caminho para a cavidade torácica.
“Agora agarra e puxa.”
Descobriu o coração sem dificuldade, e envolveu-o por completo. A massa muscular, húmida e escorregadia, envolveu-lhe os dedos de volta, como se a sua mão tivesse passado a fazer parte do coração e, por extensão, ele todo fosse parte do todo dela.
Sentiu os batimentos.
tum tum.
tum tum.
Num movimento único, arrancou-o e trouxe-o pela cavidade torácica, diafragma, cavidade abdominal, superfície.
A escuridão pouco lhe permitiu, mas conseguiu distinguir – e sentir – o sangue a escorrer-lhe por todo o antebraço, esguichando ainda rios para cima dos lençóis.
“Estás a ver essa artéria grossa aí em cima?” – Ele acenou um sim mudo – “Mete o dedo por aí, assim que sentires um papel, podes tirar.”
Ele assim o fez, removendo o dedo mal sentiu um papel, e descobriu-o agarrado à ponta do indicador, colado pelo sangue.
“E agora?” – Perguntou ele.
“Abre o papel.”
“Tem o meu nome.”
“Então, podes pôr tudo de volta.”
Ele obedeceu, enfiando o coração no seu sítio de origem e unindo as pontas rasgadas do diafragma e, depois, da pele do ventre.
“Já está?”– Perguntou ele.
“Sim.” – Respondeu ela, num sorriso.
Ele voltou-se de costas para ela e aconchegou-se no lençóis, em posição fetal.
Os braços dela envolveram-no em menos de nada, e um calor irradiou-lhe da pele, insignificante para qualquer outro momento em excepção do momento – exacto, preciso – em que os braços dela o envolveram.
“Amanhã já não me lembro de ti?”
“Amanhã já não te lembras de mim.”
“O que é que isso significa?”
“Significa que amanhã vês o mundo. E eu sou a antítese; sou a forma do não-mundo; sou a crença na descrença; o real do que não existe; as concepções órfãs que nunca matam a fome.
Eu sou o que tu esqueces – só e somente o que tu esqueces.”
Ela pousou a mão direita sobre os olhos dele, a esquerda sobre o nariz e a boca e, na ausência de luta pela sobrevivência, desvaneceu-se, gentilmente.