Crónicas para dormir (X)
“Não há consolação, amigo triste, o homem é um animal inconsolável.”
É estranho, este corpo – ou melhor, esta dualidade corpo-mente.

Sinto-me capaz de ver o que é honesto, como se de uma característica de tratasse, um nariz grande, um lábio torto, um queixo vincado: uma honestidade.
Pensando bem, pouco há nisto de estranho ou inovador, mas a maneira como o sinto é-o: um arrepio, que me percorre a espinha – já que nada mais poderia percorrer – e os meus sentidos respondem todos em uníssono, numa dança síncrona, em que declaram um outro ser – figurativo, neste momento – como capaz ou incapaz.
É injusto?
À primeira vista.
Contudo, nasce um estranho paradoxo se assim for.
Tudo é um vulgar reflexo.
Nestas palavras, por exemplo, sou eu quem reflecte nelas algo vulgar.

Não existem espelhos – pelo menos, não um que crie a reflexão. Essa sustenta-se da guerra, floresce do suor que contamina o solo e origina frutos que variam em sabor.
Não existem espelhos – a reflexão destes é momentânea e move-se comigo.
A reflexão de que falo, preserva e estende a realidade, decanta-a em ínfimas partes, e o ser humano – mortal criatura – é sempre mais lento do que o que acontece.
A reflexão nunca é o presente.
De qualquer modo, nada nos permite alterar o momento – o segundo que vivemos quando o vivemos – mas, com os marcadores coloridos, vamos pintando o que nos envolve, dando cores ao que não tem, naturalmente, ou transfigurando-as, com o intuito solitário de criar o mundo que queremos, desrespeitando o mundo que é real.
É importante aceitar a máxima de Sócrates.
Afinal, a reflexão é o que eu quiser, não o que é, o que foi ou o que será. Tolerar qualquer uma dessas falácias, é abrir portas a um universo parcial.
Há uma dor.
Há sempre uma dor.

Há uma dor que me contrai o crânio, que me aperta o cérebro, em pulsações, como se, invejosa do músculo cardíaco, tentasse imitar os batimentos tum tum tum tum.
É essa dor que me enlouquece; que me faz crer que sou mortal, que envelheço, que não há vontade ou movimento que quebre a invariabilidade do tempo.
Aceito.
Nestes ciclos carnívoros, não há liberdade, há concordância com as nossas condições.
Que poético. Tocante demais.
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Obrigado pela leitura e pelo comentário!
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