Crónicas para dormir (XII):
Pertença e traduções.

Não pertenço.
E não é por medo que me ausento.
É sempre por me ver na margem do mundo – esse hipotético declínio – onde o som chega abafado, as visões desfocadas e o tempo, vagaroso, nunca vem quando é suposto, atrasando o passo para me ver de longe – humores que não entendo ou partilho.
Tropeço em mim mesmo quando me deito, por vezes já deitado. E no surrealismo de me ver cair, quando já estou caído, encontro uma urgência que me afaga o peito.
Breves acelerações.

Agarra-me.
A queda é longa, o chão é certo, mas é tão bom cair ciente que há mais do que os meus membros.
Se o mundo escurecesse, tornasse os meus olhos obsoletos, e as décadas corressem e eu esquecesse; ainda assim, não me vendo, saberia que sou, que existo, que algo há que se identifica a si mesmo, que se apresenta.
Talvez não se entenda, os significados dúbios das palavras.
Afinal, nada perdura o seu intuito, após gerações de traduções, de acrescentos e recuos.
Mas se eu existo sem luz, sem noção de existência; se eu existo num absoluto que é independente; então prende-me seguro.
Porque os dias cegam-nos mais do que a noite, e eu perco o meu centro, desregulo o meu cérebro, e se não me agarras, se não me manténs, cada parte de mim navegará pelo vento, indiferente entre si.
E é tão bom ser inteiro.
Solidão é o ciúme que exalta o divórcio.
Se és só, não és inteiro.

As noites, desconfio, não convivem com os monstros, não os convidam para dormir ocultando-os nas sombras.
Afinal, ao escrever estas palavras, não pondero em corpos desfigurados, nessas preguiças engenhosas, nesses temores recreativos;
São os desleixos que invoco, os sintéticos relvados que piso, sorridente, julgando pisar outros mais verdes, mais inssurectos.
É o estado de natureza que ganha peso em mim.
E quando dou por isso, quando a consciência se exterioriza, já o mundo que me rodeia se pinta, satisfeito, desses jeitos violentos.
Mas amanhã nasce o sol, amanhã a terra seca, o homem ergue o corpo e trabalha, e eu sei, num saber incongruente, que nada do que penso alguma vez se resumirá nas palavras que escrevo.