Crónicas humanas (I)
Gosto de visões simplistas.
É ver o cérebro a tentar dar ordem; a rasgar as camadas, uma a uma, e a formar nós com os farrapos, como os lençóis à janela quando a princesa quer fugir.

Gosto, entenda-se, não como versão do mundo – não como ponderação – mas como forma de arte. Afinal, porque não?
É uma redução ao ridículo, um geocentrismo no século XXI, um cubismo com mais de cómico e menos de exploratório.
Visto bem, talvez seja mesmo parte da nossa natureza – afinal, a vida não é exuberante;
É certo que o simples, o que nós vemos, já é profuso em beleza – mas consideremos o que se imerge em nós, por detrás deste tecido entediante e antes de sequer chegarmos ao ínfimo, e descobrimos uma orquestra divina de cordas e tubas e sopros e órgãos. E o maestro, lá em cima, com a sua batuta – chamaram-lhe espinha – regula os tempos, os volumes, os fins e os começos.
Daí, se se quiser, podemos ir a cada órgão, entender que o corpo do mais burro de nós, é um sublime desenho de génio.
Vamos às células depois, se tudo isso não chegar.
Dentro da célula, de seguida, aos ínfimos que os ínfimos geram.
E no mais belo dos círculos, voltamos à superfície, mas conscientes, agora, que tudo isto se passa, toda esta divina, celestial complexidade, enquanto eu escrevo “gosto de visões simplistas.”
Façam-me este favor e, por um segundo, contemplem este cenário puramente ficcional:

Consideremos uma célula do vosso corpo – atiremos à sorte, já que nenhuma é burra para o exemplo – uma célula do vosso fígado.
Por uma concessão divina, esta célula cresce, liberta-se e ganha consciência própria. Ela relembra – porque também lhe foi concedida memória – as funções que tinha:
- Formar e excretar a bílis, ureia, albumina sérica, factores de coagulação, enzimas, entre outras proteínas;
- Metabolizar fármacos e outras substâncias externas;
- Controlar o metabolismo do colesterol;
- E os eteceteras que não significam nada para nós.
E dá-se que, no misto disto, recai em vocês a responsabilidade de lhe explicar o racismo.
Há quem imagine zombies, vírus, bombas atómicas…
Eu, por vezes, sonho com uma forma diferente de apocalipse.

No fundo, é de uma simplicidade educativa – a ideia, não a realização – e centra-se nesta premissa:
- Por 24 horas, o organismo despreocupa-se com o coração e a sua actividade torna-se num esforço activo, consciente, igual a lavar os dentes.
Talvez numa primeira vista, possa não parecer assim tão apocalíptico mas repare-se:

Cada ciclo tem 0.8 segundos com sístoles e diástoles, contracções e relaxamentos, abertura e encerramento coordenado das válvulas atrioventriculares (tricúspide e mitral) e semilunares (pulmonar e a aórtica).
E, se aquém da perfeição, cada um destes fenómenos tem as suas próprias patologias: arritmias, valvulopatias, anginas, cardiomiopatias.
Se a vida quisesse – qual dialéctica – era só, por um milissegundo, entregar-nos o volante.